Kardec relata em Obras Póstumas que um dos primeiros resultados das suas observações
foi perceber que os Espíritos não possuíam nem a soberana sabedoria, nem a
soberana ciência, como rezava a cultura popular. Eles não eram nada mais que as
almas dos homens que aqui viveram. É por isto que afirma que “esta verdade,
reconhecida desde o princípio, preservou-me do perigo de acreditar na
infalibilidade deles e livrou-me de formular teorias prematuras sobre os
ditados de um ou de alguns” [1].
Foi esta a
postura adotada pelo codificador durante todos os quinze anos em que esteve
envolvido com os assuntos espíritas. Uma postura sensata, madura e que merece
ser copiada nos dias de hoje. E em quantos centros espíritas podemos observar
tal postura sendo repetida hoje? Muito poucos! Em tempos de vacas gordas, como
os atuais, onde as obras espíritas (e até as que se fazem passar por
espíritas...) ganham espaço na mídia e no mercado editorial, quantos editores
vão perder tempo em analisar criteriosamente uma obra, seja um romance, seja
uma obra de conteúdo doutrinário de forma tão minuciosa que possa descobrir se
o ponto no i está correto? Mais uma vez, poucos, muito poucos. A maioria não
liga para estes critérios, pois o tipo do papel utilizado na impressão, a arte
que será impressa na capa, o autor “de prestígio” que assinará o prefácio [normalmente
um médium, já que um mero encarnado que se dispõe a estudar e comentar o
Espiritismo normalmente não é tão respeitado como o ‘mensageiro dos espíritos’]
e a possibilidade do livro alcançar vultosas tiragens é o mais importante. Não
importa se o conteúdo do livro for absurdamente duvidoso, a polêmica também
traz lucros, pensam eles. E nisto, a qualidade também se vai.
Contudo,
quando existe um trabalho criterioso, muitos equívocos podem ser evitados e muitas
informações erradas deixam de ser publicadas. E olhe que não são poucas as
obras que poderiam ser atribuídas a Espíritos pseudossábios. E isto é até
interessante de se ver. Existem obras que todo mundo sabe que conflitam com os
princípios mais básicos do Espiritismo, entretanto, elas são publicadas sem uma
referência sequer, nem uma nota corrigindo tal ou qual opinião. E é justamente
isto o que Kardec comenta quando afirma que
“[...] Não haveria nenhum inconveniente em publicar essas
espécies de comunicações, se as fizessem acompanhar de comentários, seja para
refutar os erros, seja para lembrar que
são a expressão de uma opinião individual, da qual não se assume a
responsabilidade; poderiam mesmo ter um lado instrutivo, mostrando a que
aberrações de ideias podem entregar-se certos Espíritos. Mas, publicá-las pura e simplesmente é
apresentá-las como expressão da verdade e garantir a autenticidade das
assinaturas, que o bom senso não pode admitir; eis o inconveniente” [2].
Mas, quem
ousa hoje corrigir os luminares que psicografam teorias muito além da nossa
compreensão? Quem ousa criticar (no verdadeiro sentido etimológico da palavra
que é ‘avaliar qualitativamente algo ou alguém’) estas obras corre o grande
risco de morrer no ostracismo, na ignorância, no esquecimento. Felizmente ainda
existem aqueles que não desejam apenas divulgar o Espiritismo e vivê-lo em seu
aspecto moral (mesmo que superficialmente), mas, acima de tudo, existem aqueles
que querem pensá-lo. Que desejam continuar raciocinando. É a estes que devemos
obras como A Pedra e o Joio, Pesquisa sobre a Mediunidade e Diversidade dos Carismas.
Até porque,
é o próprio Codificador que nos incita a denunciar sem hesitação as obras
suspeitas, pelo bem da doutrina. E isto pelo simples fato de que se os
espíritos possuem, além do livre-arbítrio, opiniões sobre os homens e as coisas
deste e do outro mundo, compreende-se que existam textos que devam ser evitados
não só por conveniência, mas por prudência pura e simples. Esta questão leva Kardec a afirmar que no interesse da Doutrina convém
fazer uma seleção muito severa, eliminando tudo quanto possa produzir uma má
impressão.
Por outro lado,
existem algumas obras que mesmo sendo instrutivas, relatam situações e
ambientes do mundo espiritual de forma analógica, comparativa e que se não
forem devidamente analisadas e comentadas podem ser tomadas como realidade. É
isto o que leva José Herculano Pires a afirmar que as “obras mediúnicas,
psicografadas, que descrevem com excesso de minúcias a vida no plano espiritual
devem ser encaradas com reserva pelos espíritas estudiosos” [3]. Entretanto, além destas precauções, outras
devem ser observadas, principalmente aquela que diz respeito à participação dos
médiuns na escolha das comunicações ou mesmo na publicação das mesmas.
“Enquanto o médium imperfeito se orgulha dos nomes ilustres,
o mais frequentemente apócrifos, que levam as comunicações que ele recebe, e se
considera intérprete privilegiado das forças celestes, o bom médium não se crê
jamais bastante digno de tal valor, tendo sempre uma salutar desconfiança da
qualidade daquilo que recebe não se confiando ao seu próprio julgamento; não sendo senão um instrumento passivo, ele
compreende que, se é bom, não pode disso fazer um mérito pessoal, não mais do
que pode ser responsável se é mau, e que seria ridículo acreditar na identidade
absoluta dos Espíritos que se manifestam por ele; deixa a questão ser
julgada por terceiros desinteressados, sem que o seu amor-próprio tenha mais a
sofrer com um julgamento desfavorável do que o ator que não é passível da
censura infligida à peça da qual é intérprete. Seu caráter distintivo é a
simplicidade e a modéstia; é feliz com a faculdade que possui, não para dela se
envaidecer, mas porque lhe oferece um
meio de ser útil, o que faz voluntariamente quando lhe surge a ocasião, sem jamais melindrar-se se não é colocado
em primeiro plano”. [4]
Estas reflexões me remetem,
inevitavelmente, à assustadora quantidade de médiuns donos de editoras, que
fundam centros e gráficas para publicar seus livros quando eles não são aceitos
com bons olhos pelos seus companheiros de ideal. Mas não só a eles. Quantos aqui guardariam
por mais de vinte anos uma psicografia, e os insistentes convites dos Espíritos
autores (do tamanho de um livro) por não achar que ela deveria ser publicada
naquele momento? Muitos médiuns mal terminam de psicografar e já procuram
alguém de nome para prefaciar a obra que nem finalizada está, como comentou
certa vez o médium Divaldo Franco. Infelizmente são poucos os que assumem uma
postura idêntica a da Yvonne Pereira no famoso caso do Espírito Beletrista (Ver
a obra Devassando o Invisível para
maiores informações).
E é por isto que hoje vemos tanta
gente que apenas admira o Espiritismo, tantas cabeças ‘pensantes’ que se
acostumaram a viver apenas como as lagartixas, balançando a cabeça pra tudo o
que os Espíritos dizem atestando a sua ignorância em tudo o que diz respeito ao
Espiritismo. E ai de quem ousar dizer que ele está fascinado! Conheço o caso de
uma senhora que jura ser a encarnação de vários espíritos famosos pela
psicografia de um médium também famoso, já desencarnado, mas que demonstra
claros sinais de uma assustadora fascinação. Imagina se ela psicografasse
livros?
Não é à toa que Kardec se preocupava
com relação à publicação de comunicações mediúnicas, de uma forma geral. Não
por acaso, também, que insistimos em repisar as advertências feitas por
Herculano Pires sobre a importância de uma séria e sólida formação doutrinária
para as futuras gerações espíritas. E para finalizar estas reflexões, como
disse certa vez o Codificador:
“Em matéria de publicidade, portanto, toda circunspeção é
pouca e não se calcularia com bastante cuidado o efeito que talvez produzisse
sobre o leitor. Em resumo, é um grave
erro crer-se obrigado a publicar tudo quanto ditam os Espíritos, porque, se os
há bons e esclarecidos, também os há maus e ignorantes. Importa fazer uma
escolha muito rigorosa de suas comunicações e suprimir tudo quanto for inútil,
insignificante, falso ou susceptível de produzir má impressão. É preciso semear, sem dúvida, mas semear a
boa semente e em tempo oportuno”. [5]
Referências:
[1] KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 14ª Ed. SP, LAKE, 2007, p.
217.
[2] _______. Viagem Espírita em 1862. 1ª Ed. RJ, FEB, 2005,
p. 123.
[3] PIRES, J. Herculano. Mediunidade.
[4] _______. O que é o Espiritismo. IDE, item 87,
pag. 114
[5] KARDEC,
Allan. Viagem Espírita
em 1862. 1ª Ed. RJ, FEB, 2005, p.
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