domingo, 29 de julho de 2012

Reflexões acerca da publicação de comunicações mediúnicas



Kardec relata em Obras Póstumas que um dos primeiros resultados das suas observações foi perceber que os Espíritos não possuíam nem a soberana sabedoria, nem a soberana ciência, como rezava a cultura popular. Eles não eram nada mais que as almas dos homens que aqui viveram. É por isto que afirma que “esta verdade, reconhecida desde o princípio, preservou-me do perigo de acreditar na infalibilidade deles e livrou-me de formular teorias prematuras sobre os ditados de um ou de alguns” [1].
            Foi esta a postura adotada pelo codificador durante todos os quinze anos em que esteve envolvido com os assuntos espíritas. Uma postura sensata, madura e que merece ser copiada nos dias de hoje. E em quantos centros espíritas podemos observar tal postura sendo repetida hoje? Muito poucos! Em tempos de vacas gordas, como os atuais, onde as obras espíritas (e até as que se fazem passar por espíritas...) ganham espaço na mídia e no mercado editorial, quantos editores vão perder tempo em analisar criteriosamente uma obra, seja um romance, seja uma obra de conteúdo doutrinário de forma tão minuciosa que possa descobrir se o ponto no i está correto? Mais uma vez, poucos, muito poucos. A maioria não liga para estes critérios, pois o tipo do papel utilizado na impressão, a arte que será impressa na capa, o autor “de prestígio” que assinará o prefácio [normalmente um médium, já que um mero encarnado que se dispõe a estudar e comentar o Espiritismo normalmente não é tão respeitado como o ‘mensageiro dos espíritos’] e a possibilidade do livro alcançar vultosas tiragens é o mais importante. Não importa se o conteúdo do livro for absurdamente duvidoso, a polêmica também traz lucros, pensam eles. E nisto, a qualidade também se vai.
            Contudo, quando existe um trabalho criterioso, muitos equívocos podem ser evitados e muitas informações erradas deixam de ser publicadas. E olhe que não são poucas as obras que poderiam ser atribuídas a Espíritos pseudossábios. E isto é até interessante de se ver. Existem obras que todo mundo sabe que conflitam com os princípios mais básicos do Espiritismo, entretanto, elas são publicadas sem uma referência sequer, nem uma nota corrigindo tal ou qual opinião. E é justamente isto o que Kardec comenta quando afirma que

“[...] Não haveria nenhum inconveniente em publicar essas espécies de comunicações, se as fizessem acompanhar de comentários, seja para refutar os erros, seja para lembrar que são a expressão de uma opinião individual, da qual não se assume a responsabilidade; poderiam mesmo ter um lado instrutivo, mostrando a que aberrações de ideias podem entregar-se certos Espíritos. Mas, publicá-las pura e simplesmente é apresentá-las como expressão da verdade e garantir a autenticidade das assinaturas, que o bom senso não pode admitir; eis o inconveniente” [2].
            Mas, quem ousa hoje corrigir os luminares que psicografam teorias muito além da nossa compreensão? Quem ousa criticar (no verdadeiro sentido etimológico da palavra que é ‘avaliar qualitativamente algo ou alguém’) estas obras corre o grande risco de morrer no ostracismo, na ignorância, no esquecimento. Felizmente ainda existem aqueles que não desejam apenas divulgar o Espiritismo e vivê-lo em seu aspecto moral (mesmo que superficialmente), mas, acima de tudo, existem aqueles que querem pensá-lo. Que desejam continuar raciocinando. É a estes que devemos obras como A Pedra e o Joio, Pesquisa sobre a Mediunidade e Diversidade dos Carismas.
            Até porque, é o próprio Codificador que nos incita a denunciar sem hesitação as obras suspeitas, pelo bem da doutrina. E isto pelo simples fato de que se os espíritos possuem, além do livre-arbítrio, opiniões sobre os homens e as coisas deste e do outro mundo, compreende-se que existam textos que devam ser evitados não só por conveniência, mas por prudência pura e simples. Esta questão leva Kardec a afirmar que no interesse da Doutrina convém fazer uma seleção muito severa, eliminando tudo quanto possa produzir uma má impressão.
            Por outro lado, existem algumas obras que mesmo sendo instrutivas, relatam situações e ambientes do mundo espiritual de forma analógica, comparativa e que se não forem devidamente analisadas e comentadas podem ser tomadas como realidade. É isto o que leva José Herculano Pires a afirmar que as “obras mediúnicas, psicografadas, que descrevem com excesso de minúcias a vida no plano espiritual devem ser encaradas com reserva pelos espíritas estudiosos” [3].  Entretanto, além destas precauções, outras devem ser observadas, principalmente aquela que diz respeito à participação dos médiuns na escolha das comunicações ou mesmo na publicação das mesmas.

“Enquanto o médium imperfeito se orgulha dos nomes ilustres, o mais frequentemente apócrifos, que levam as comunicações que ele recebe, e se considera intérprete privilegiado das forças celestes, o bom médium não se crê jamais bastante digno de tal valor, tendo sempre uma salutar desconfiança da qualidade daquilo que recebe não se confiando ao seu próprio julgamento; não sendo senão um instrumento passivo, ele compreende que, se é bom, não pode disso fazer um mérito pessoal, não mais do que pode ser responsável se é mau, e que seria ridículo acreditar na identidade absoluta dos Espíritos que se manifestam por ele; deixa a questão ser julgada por terceiros desinteressados, sem que o seu amor-próprio tenha mais a sofrer com um julgamento desfavorável do que o ator que não é passível da censura infligida à peça da qual é intérprete. Seu caráter distintivo é a simplicidade e a modéstia; é feliz com a faculdade que possui, não para dela se envaidecer, mas porque lhe oferece um meio de ser útil, o que faz voluntariamente quando lhe surge a ocasião, sem jamais melindrar-se se não é colocado em primeiro plano”. [4]
Estas reflexões me remetem, inevitavelmente, à assustadora quantidade de médiuns donos de editoras, que fundam centros e gráficas para publicar seus livros quando eles não são aceitos com bons olhos pelos seus companheiros de ideal.  Mas não só a eles. Quantos aqui guardariam por mais de vinte anos uma psicografia, e os insistentes convites dos Espíritos autores (do tamanho de um livro) por não achar que ela deveria ser publicada naquele momento? Muitos médiuns mal terminam de psicografar e já procuram alguém de nome para prefaciar a obra que nem finalizada está, como comentou certa vez o médium Divaldo Franco. Infelizmente são poucos os que assumem uma postura idêntica a da Yvonne Pereira no famoso caso do Espírito Beletrista (Ver a obra Devassando o Invisível para maiores informações).
E é por isto que hoje vemos tanta gente que apenas admira o Espiritismo, tantas cabeças ‘pensantes’ que se acostumaram a viver apenas como as lagartixas, balançando a cabeça pra tudo o que os Espíritos dizem atestando a sua ignorância em tudo o que diz respeito ao Espiritismo. E ai de quem ousar dizer que ele está fascinado! Conheço o caso de uma senhora que jura ser a encarnação de vários espíritos famosos pela psicografia de um médium também famoso, já desencarnado, mas que demonstra claros sinais de uma assustadora fascinação. Imagina se ela psicografasse livros?
Não é à toa que Kardec se preocupava com relação à publicação de comunicações mediúnicas, de uma forma geral. Não por acaso, também, que insistimos em repisar as advertências feitas por Herculano Pires sobre a importância de uma séria e sólida formação doutrinária para as futuras gerações espíritas. E para finalizar estas reflexões, como disse certa vez o Codificador:

“Em matéria de publicidade, portanto, toda circunspeção é pouca e não se calcularia com bastante cuidado o efeito que talvez produzisse sobre o leitor. Em resumo, é um grave erro crer-se obrigado a publicar tudo quanto ditam os Espíritos, porque, se os há bons e esclarecidos, também os há maus e ignorantes. Importa fazer uma escolha muito rigorosa de suas comunicações e suprimir tudo quanto for inútil, insignificante, falso ou susceptível de produzir má impressão. É preciso semear, sem dúvida, mas semear a boa semente e em tempo oportuno”. [5]
Referências:
[1] KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 14ª Ed. SP, LAKE, 2007, p. 217.
[2] _______. Viagem Espírita em 1862. 1ª Ed. RJ, FEB, 2005, p. 123.
[3] PIRES, J. Herculano. Mediunidade.
[4] _______. O que é o Espiritismo. IDE, item 87, pag. 114
[5] KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862. 1ª Ed. RJ, FEB, 2005, p.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

De Sonda nas Mãos e Consultando os Ventos


    Kardec sempre se preocupou com a necessidade de expressar os conceitos espíritas com termos que não causassem confusão nem fossem considerados ambíguos. Da mesma forma, ele sabia por experiência própria que o Espiritismo teria “principalmente, no começo, de lutar contra ideias pessoais, sempre intransigentes, tenazes, difíceis de se harmonizar com as ideias de outrem e contra a ambição dos que querem ligar, a todo o custo, o seu nome a uma inovação qualquer, que inventam novidades só para poderem dizer que não pensam e não fazem como os outros, ou porque o seu amor próprio se revolta por terem de ocupar um lugar secundário”[1].
         Desta citação, ouso cortar somente a expressão “no começo”, pois se esta luta existia ao tempo de Kardec, hoje ela parece estar ainda mais gritante. De um lado observamos médiuns estrelas, considerados verdadeiros oráculos de sabedoria e editoras conduzidas por médiuns psicógrafos, algumas criadas com o honesto e verdadeiro sentimento de contribuir com a mensagem espírita, já outras nascidas apenas do orgulho ferido do seu fundador por não terem as “suas obras” [DOS ESPÍRITOS, ressalve-se] o reconhecimento que deveriam; Por outro lado, vemos trabalhadores dedicados ao estudo da doutrina serem ignorados, escanteados mesmo, seja por não produzirem novidades a todo o momento, seja pelo fato de não concordarem com estas supostas novidades surgidas, normalmente, de uma interpretação apressada e equivocada dos ensinos espíritas.
         Normalmente, são por estes motivos que as tentativas de adulteração doutrinária acontecem. Adulterar significa deturpar, deformar, falsificar algo. Dentro do movimento espírita está associado às tentativas de modificar os conceitos espíritas sem uma fundamentação séria, consistente e coerente seja científica seja filosófica. Normalmente as tentativas são equivocadas e fruto de puro desconhecimento dos mais básicos princípios do Espiritismo. De outras, são fruto de mentes desencarnadas ardilosas, especialistas em misturar o joio ao trigo, que articulam seus planos no mundo espiritual e que as publicam no meio espírita através de médiuns invigilantes, ingênuos e que só caem em suas armadilhas porque são imprudentes.
         De acordo com José Herculano Pires, “qualquer obra que pretenda superar Kardec ou subestimar a Doutrina Espírita precisa ser submetida à prova de toque. E essa prova só pode ser feita de duas maneiras: de um lado conferindo-se a pretensa superação com a obra de Kardec para verificar-se qual das duas está mais coerente e apresenta maior coesão, maior unidade e firmeza nos seus princípios; de outro lado, conferindo-se, como recomenda o próprio Kardec, os princípios da pretensa superação com as exigências do pensamento atual em todos os campos da nossa atividade mental” [2].
         Kardec sempre esteve atento a este fato. Tanto que afirmou ser indispensável para a unidade futura do movimento espírita que todas as partes da Doutrina fossem determinadas com clareza e precisão, sem que nenhuma ficasse mal definida. “Neste sentido temos feito todo o esforço para que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e esforçar-nos-emos por manter esta regra” [1]. Sobre este assunto, o codificador elencou três pontos que considerou de importância capital para a unidade futura do Espiritismo:
1)     O primeiro ponto é utilizar-se sempre de uma linguagem objetiva, clara e precisa como “dois mais dois é igual a quatro”. Desta forma, ninguém ousará dizer que é cinco. “Poder-se-ão formar, fora da Doutrina, seitas que não adotem alguns ou todos os princípios; não no seio dela, por interpretação do texto, como se tem formado, tão numerosa, sobre o sentido das palavras do evangelho” [1]. Sobre este ponto indico para leitura o texto “A importância da nomenclatura para a unidade futura do Espiritismo” como forma de complemento e melhor compreensão das ideias aqui inseridas.
2)     O segundo tem a ver com a importância de não sairmos do círculo das ideias práticas. Ou seja, “se é certo que a utopia de hoje se torna muitas vezes a verdade de amanhã, deixemos que o futuro realize a utopia de hoje, mas não enredemos a doutrina com princípios que possam ser considerados quimeras e a tornem rejeitada pelos homens positivos” [1]. Este ponto é perfeitamente aplicável às inúmeras novidades que se publicam hoje na vasta literatura espírita: seja o perispírito com órgãos de tipo físico, sejam os vários corpos que teria o perispírito, seja uma técnica que se propõe a resolver todos os problemas obsessivos considerados ‘complexos’ ou a existência de crianças com nomes de pedras preciosas, todos estes assuntos deveriam ser estudados com muito mais prudência e cautela pelos espíritas, principalmente antes de serem divulgados. Utopias são consideradas verdade sem um mínimo de pesquisa, estudo e reflexão. Normalmente, basta que um livro seja publicado ou um médium a divulgue, principalmente se ele for famoso. Insere-se aí a estapafúrdia ideia de se poder existir gravidez e reencarnação no mundo espiritual. “Kardec sustentou sempre a necessidade de pesquisas para a comprovação de certos dados transmitidos por via mediúnica. Ele não aceitou as informações dadas por Mozart e Bernard Palissy através do médium Camille Flammarion e nem mesmo considerou verídicos os desenhos famosos de Victorien Sardou sobre a possível vida em Júpiter. Acatou-as como manifestações curiosas da mediunidade e sugestões do que poderia haver em mundos superiores à condição da Terra” [3]. Como seria bom se muitos dos expositores espíritas, editores e escritores, não esquecendo os médiuns, copiassem esta postura de Kardec no seu dia a dia. Teríamos um movimento espírita muito mais maduro e coeso.
3)     O terceiro ponto tem a ver com a característica essencialmente progressiva da doutrina. Kardec sempre cuidou de não envolver o Espiritismo em sonhos irrealizáveis e nem por isso ela ficou estática, imóvel. Entretanto, vale a pena deixar claro que mesmo “seguindo [...] o movimento progressivo, cumpre-lhe guardar a maior prudência e livrar-se dos devaneios, das utopias e de sistemas. É preciso andar a tempo, nem muito depressa, nem muito devagar e com conhecimento de causa” [1]. Ou seja, a doutrina vai evoluir, já que isso faz parte da sua natureza, mas, deve ser com os pés no chão e não de forma atabalhoada, sem estudo, sem critérios, sem pesquisa. É por isso que “antes de pensar em ‘novas revelações’, o de que precisamos com urgência é de estudo sistemático e mais aprofundado da obra de Kardec, incluindo não só os tomos da Codificação mas também a Revista Espírita, por ele mesmo indicada como indispensável ao bom conhecimento da doutrina” [4].

         A compreensão exata e profunda destes três pontos nos permite não só compreender melhor o Espiritismo e a sua força, mas, e acima de tudo, nos auxilia no combate às tentativas de deturpação doutrinária que vem surgindo no movimento espírita através de obras suspeitas. É por isto que Kardec afirma que “a Doutrina tendo caminhado por esta via desde a sua origem, seguiu avante constantemente, mas sem precipitação, examinando sempre se é sólido o terreno em que põe o pé, e medindo os passos com respeito à opinião. Tem andado como o navegante: de sonda nas mãos e consultando os ventos” [1]. E é assim que deve andar o espírita antes de resolver publicar qualquer novidade com o rótulo espírita, sempre investigando, pesquisando e consultando os Espíritos através das esquecidas evocações.
         Para finalizar, concordo com o J. Herculano Pires quando afirma que “estudar Kardec, pondo de lado todas as tentativas de desfiguração da mesma que foram semeadas no meio doutrinário por seus pretensos superadores, já é uma contribuição, por modesta que seja, ao reconhecimento da abnegação do mestre. E mais do que isso, o estudo sério, consciencioso, respeitoso dessa obra monumental, é dever de todos os que a seguem como filosofia de vida, mesmo que tropeçando nas pedras do caminho” [3].

Referências:
1.     KARDEC, Allan. Obras Póstumas. SP – LAKE, 2007. Segunda Parte, p. 282 a 284.
2.     PIRES, J. Herculano. A Pedra e o Joio. 3ª Ed, SP – Paideia, 2005, p. 12.
3.     ______. O Mistério do Ser ante a Dor e a Morte. 3ª Ed, SP – Paideia, 1996, p. 41, 42 e 81.
4.     RIZZINI, Jorge. J. Herculano Pires – O Apóstolo de Kardec. 1ª Ed, SP – Paidéia, 2001, p. 246.