“As
opiniões são contraditórias, mas isso não nos deve impressionar, pois opiniões
não passam de palpites, de pontos de vista individuais, sujeitos às
idiossincrasias de cada um. E Pitágoras, o criador do termo Filosofia, já
afirmava que a Terra é a morada da opinião”. (J. Herculano Pires [1])
Consoante o que afirmou o
filósofo Pitágoras, podemos afirmar, sem medo, que também a erraticidade é a morada da opinião. Da mesma forma, não
devemos nos assustar com a disparidade de opiniões encontradas, pois sabemos
que os Espíritos não são divindades nem se tornam perfeitos pelo fato de
abandonarem o veículo corporal. A vantagem que hipoteticamente eles teriam, por
estarem livres do envoltório corporal, está em razão da sua posição na escala
espírita, ou, como se diz popularmente: da sua evolução espiritual.
É por isto que, não cessamos de repetir
sobre a importância do cuidado na análise das informações vindas dos Espíritos
independente do nome que assine. De outra forma, também cabe ressaltar já no
início deste texto que não estamos iniciando nenhuma cruzada inquisitorial
contra o médium Carlos Baccelli e o Espírito que se denomina Inácio Ferreira.
Estamos, antes de qualquer coisa, realizando a tão propalada análise crítica
preconizada pelo codificador e enfatizada pelos Espíritos que o orientaram no
trabalho de construção do edifício doutrinário espírita. O fato de ser esta a
quarta mensagem da autoria do Inácio a ser analisada se deve ao fato de o seu
conteúdo nos permitir um desenvolvimento oportuno da crítica literária espírita
iniciada por Kardec e que é dever de todos os Espíritas. Também vale mencionar
que, de fato, o que se analisa aqui é a
opinião do Espírito Inácio e sobre a qual o médium deve permanecer
indiferente, dado que a sua função é ser um mediador entre o autor espiritual e
nós encarnados, da mesma forma que o computador serve de mediador entre aquele
que escreve e aquele que lê, por exemplo [2].
Nesta mensagem, intitulada de Impasse Doutrinário [3], o referido
Espírito afirma que “na atualidade, o Espiritismo, através de seu Movimento,
está vivenciando um impasse doutrinário sem precedentes na sua recente história”.
Impasse este resultante, não de um questionamento dos seus princípios, mas, na
opinião de Ferreira, dos “perigosos rumos que vêm, de algum tempo a esta parte,
sendo impressos ao Movimento, por companheiros que, no que pese a sua boa
intenção, agem equivocadamente”.
Estes “perigosos rumos” seriam
dados por seres que, deslumbrados pelos poderes temporais, estariam levando o
Espiritismo para o caminho do elitismo. Esta acusação, infundada, não é nova e
continuará a ser usada toda a vez que houver um conflito de ideias. E é
bastante usada quando as ideias de determinados Espíritos são avaliadas
criticamente e questionadas em sua validade e importância por apresentarem,
muitas, equívocos insanáveis ou por ser, de forma clara, obra de espíritos
mistificadores. Qualquer um pode ser acusado de elitista. Basta, para isso,
questionar algum destes Espíritos tendo por base dados da Codificação e
realizar um exame criterioso em busca de coerência e lógica na opinião em
análise. Basta também divulgar a importância de um estudo metódico, profundo e
perseverante dos cerca de dezoito livros publicados por Allan Kardec e as
valiosas obras complementares de autores como Léon Denis, Gabriel Delanne,
Camille Flammarion, Ernesto Bozzano, Alexander Aksakof, entre os europeus e J.
Herculano Pires, Deolindo Amorim, Carlos Imbassahy, Hermínio C. Miranda, entre
os escritores e pesquisadores brasileiros.
E evocando os feitos de
Francisco de Assis, numa citação (ao que parece) textual da obra de Emmanuel, Inácio
questiona se da mesma forma que a doutrina cristã foi deturpada por aqueles
deslumbrados com a visão dos poderes temporais à época do “iluminado da Úmbria”,
não estaria o Espiritismo sendo deturpado na atualidade por indivíduos “deslumbrados
pelos poderes temporais” e se hierarquizando a semelhança do cristianismo
quando começou a se afastar da essência do evangelho.
Até aqui, a não ser pela palavra
“hierarquizando”, que parece ser uma
clara referência aos trabalhos desenvolvidos pela Federação Espírita Brasileira,
não conseguimos divisar claramente nem quem são os alvos desta crítica feita
pelo Inácio Ferreira, nem quais são estes malfadados “poderes temporais”,
embora todos possam intuí-los. Provavelmente
os deslumbrados são pessoas ligadas aos trabalhos federativos e aqueles outros
que realizam trabalhos de análise crítica das obras dos Espíritos.
Contudo, mais à frente alguns de
seus alvos vão sendo delineados. Quando ele questiona se “não estaríamos, a
pretexto de pureza doutrinária, novamente incrementando a censura, qual o
equívoco em que a Igreja Católica ocorreu, quando, então, chegou a instaurar o
Tribunal do Santo Ofício, condenando os que não se pautavam pela sua cartilha
ideológica às fogueiras da Inquisição?!”, ele deixa claro a quem se destinam
suas acusações. Aos Espíritas que, como José Herculano Pires, se propõem
estudar de forma séria e continuada o Espiritismo e que ousam questionar as
informações vindas do mundo espiritual, justamente aquilo que a maioria do
movimento espírita brasileiro nunca foi ensinada a fazer. Ou seria que todo
aquele que resolve fazer crítica literária deve ser comparado com um inquisidor
do Tribunal do Santo Ofício. A atitude de publicar obras como o fez Herculano,
questionando abertamente os ensinos de Espíritos como Ramatís e acusar André
Luiz de ser um neófito em Espiritismo [4], deve ser equiparada á censura
realizada pela Igreja Católica que inseria os livros proibidos no seu Índex
Prohibitorum? Com pretexto de impedir a
censura não estaria ele censurando a saudável e imprescindível crítica
literária espírita, já quase inexistente em nosso movimento espírita nacional?
Não seria este um exagero desnecessário? Ou seria esta justamente a atitude de
desviar o foco das necessárias análises das informações dos Espíritos sob o
falso pretexto de que quem assim se comporta estaria deixando de ser caridoso e
de se preocupar com a famosíssima ‘reforma íntima’? Estes são questionamentos
que considero pertinentes e que são válidos ante a retórica vazia do Inácio.
Vazia porque generaliza uma acusação que seria correta se direcionada para
alguém, mas, posta da forma em que foi colocada acusa todos aqueles que
defendem a pureza doutrinária de serem pessoas elitistas, apegadas aos
“deslumbrantes poderes temporais” e de não serem caridosos nem preocupados com
a reforma íntima. E o pior, quer passar a impressão de que pureza doutrinária
seria o mesmo que censura o que é um absurdo.
Equívoco também é a atitude de
chamar estes mesmos críticos literários de pessoas insensíveis e de afirmar que
querem transformar o Espiritismo em Teologia. Eu, particularmente, não entendi esta
parte. O queria dizer com isto o Inácio? Teologia, em sua etimologia, significa
“a ciência que estuda a divindade” e, por definição, o Espiritismo possui em
seu corpo doutrinário uma ‘teologia’ própria, mais especialmente em O Livro dos
Espíritos (capítulo 1) e A Gênese (capítulo 2). A não ser que ele queira se
referir a alguma questão de ordem prática, esta afirmação não se sustenta no
plano teórico. Por si só, um estudo teológico sério e profundo tende mais a nos
aproximar do divino, e em consequência alterar para melhor nosso caráter, do
que o contrário. Como o leitor deve estar percebendo, a mensagem do Inácio
Ferreira possui um caráter desnecessariamente alarmista e com pouca coerência,
não apresentando de forma clara o que deseja expressar. Ou, talvez, seja
justamente este o objetivo dele...
Entretanto, ainda existem dois parágrafos
que pedem uma análise, mesmo que sucinta. O penúltimo diz assim: “Concitamos,
pois, aos sinceros partidários da Doutrina a que não tornem a cometer o erro da
omissão, quando, nas lides do Cristianismo, optaram pelo silêncio
comprometedor, cujas consequências espirituais se fizeram sentir para a
Humanidade no curso da História”. Aqui o primeiro erro é supor que os mesmos
partidários da Doutrina Espírita na atualidade são espíritos reencarnados que
viveram e aderiram aos ideais revolucionários do então nascente Cristianismo. É
o mesmo erro cometido por todo neófito em Espiritismo que supõe ter sido alguma
figura famosa ou importante no passado, ou que, também, poderia ter sido algum
mártir devorado por leões no coliseu romano. Portanto, quem errar hoje, não
necessariamente será por ter sido omisso aos tempos do cristianismo nascente.
Ser omisso hoje é dizer-se espírita sem saber o que, de fato, significa ser
espírita! Ser omisso hoje é conhecer os princípios filosóficos espíritas e não
aplica-los à análise das informações dos Espíritos. Ser omisso hoje, é permitir
a difusão de equívocos com relação à interpretação e prática espírita e ficar
calado porque o difusor é um palestrante ou médium famoso e poderia ser acusado
de não ser caridoso. A lista poderia continuar, mas, imaginamos que os exemplos
são suficientes.
O último parágrafo apresenta um argumento
coerente e que tem a finalidade de dar, normalmente, maior autoridade ao que se
fala. É o tipo de argumento que ninguém contesta, justamente por ser óbvio
demais. Ele diz assim: “Em defesa da Verdade, não há necessidade de agressividade
na opinião e, muito menos, na conduta, mas imprescindível se torna a postura
coerente com os Princípios abraçados, no testemunho solitário da fé, porque,
conforme nos disse o Cristo, “nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! Entrarão
no reino dos céus; apenas entrará aquele que faz a vontade de meu Pai, que está
nos céus”!”...
O argumento é coerente e possui validade
pelo simples fato de que isso realmente acontece no movimento espírita. Muitos
indivíduos, a pretexto de ‘defesa de opinião’, agem de forma agressiva,
impositiva, violenta. Não concorda em ser contestado e, muito menos, em perder
o status (ilusório) que supunha possuir. Experiências deste tipo são comuns em
centros onde o diálogo e o estudo é escasso, onde existe a figura, mesmo que fictícia,
de alguém que se ache ‘dono do centro’, seja pelo seu poder econômico, seja por
uma suposta autoridade advinda ou da sua mediunidade ou do tempo que possui de
frequência na casa. Também é muito comum em discussões na internet ou em redes
sociais, onde as pessoas se escondem atrás de máscaras e perfis fakes para
poderem expor o que são de verdade, criando intrigas, difamando, debatendo e
ridicularizando quem pensa diferente. Existe uma imensa maioria que age
corretamente, tanto doutrinariamente quanto moralmente, mas, infelizmente, os
maus elementos existem em todos os lugares. Cabe salientar, ainda, que este
tipo de atitude não é especial dos que buscam defender a pureza doutrinária,
antes, é algo natural de espíritos ainda imaturos e que não conhecem o poder do
diálogo e da autoridade moral. Recentemente, ficamos sabendo de um caso de uma
leitora que escreveu para uma editora questionando a validade da publicação de
uma determinada obra e recebeu como resposta sarcasmos e ironias, justamente
daqueles que defendem as ideias deste Espírito que está sendo analisado.
O que podemos concluir desta pequena
análise feita sobre a mensagem ‘Impasse Doutrinário’ é que o risco de
elitização e hierarquização pelo qual supostamente estaria passando o
Espiritismo não é culpa dos hipotéticos defensores da pureza doutrinária
empolgados pela “visão dos poderes temporais”, mas, pela omissão de todo e
qualquer indivíduo que se permite envolver nos problemas naturais do convívio
humano e do seu processo de desenvolvimento tanto social, quanto técnico,
biológico e espiritual. Omissão é uma
atitude de indiferença, de fuga da responsabilidade que lhe cabe como indivíduo
interexistencial e não o contrário. Quando um indivíduo se posiciona ele não
está sendo omisso, em hipótese alguma. Ele pode se equivocar, mas, nunca
estará sendo omisso. Compreendendo, também, impasse
como uma “situação que não oferece saída favorável” [5], o que se pode observar
é que o verdadeiro impasse está na situação criada (e defendida, ao que parece,
pelo Inácio) em que nenhum espírito pode ser alvo de análises críticas sem que
o autor destas análises seja logo taxado de ‘pessoa insensível’ e ‘deslumbrada
com a visão dos poderes temporais’, ou ainda elitista. Em nosso país, criou-se uma cultura de ‘santidade’ aos médiuns e aos
Espíritos que não condiz com os mais básicos princípios doutrinários da
Doutrina. Pior ainda, qualquer esforço
de análise crítica corre o risco de ser taxado como falta de caridade para com
os autores espirituais e os seus médiuns, como se a postura do Espírita
tivesse de ser passiva, acrítica, acomodada ao que os outros dizem. É
justamente esta cultura que permite que um Espírito faça comparações como as
que o Inácio fez, ao tentar convencer o leitor de que a atitude crítica gerada
pela compreensão e defesa da pureza doutrinária, não sendo nada mais que uma
postura gerada pela compreensão dos postulados espíritas, por exemplo, seria a
mesma que motiva as atitudes de censura, como as da Inquisição ao criar o Tribunal
do Santo Ofício e o Índex Prohibituron. E para finalizar, os que entrarão no “reino
dos céus” não são os que fingem santidade, mas, os que vivem autenticamente os
postulados da Doutrina dos Espíritos de forma integral, defendendo ou não a
pureza doutrinária!
Referências
[1]
PIRES, J. Herculano. Introdução a Filosofia Espírita. 1ª ed. Ed. Paidéia, 1983, p.
[2]
Para maiores informações vide o artigo Os
Médiuns são os Intérpretes dos Espíritos, partes I e II.
[4]
Pires, J. Herculano. Vampirismo. 9ª
ed. 2003, Ed. Paidéia, p. 21: “O Espiritismo estaria sujeito á mais completa
deformação, se os espíritas se entregassem ao delírio dos caçadores de
novidades. André Luiz manifesta-se como um neófito empolgado pela doutrina,
empregando às vezes termos que destoam da terminologia doutrinária e conceitos que
nem sempre se ajustam aos princípios espíritas”.