sábado, 4 de outubro de 2014

KARDEC E INTEGRIDADE

 Nada é mais sagrado do que a integridade de nosso próprio espírito.
Ralph Waldo Emerson
 
Integridade é qualidade do que é íntegro; de uma probidade absoluta; honesto, incorruptível, imparcial.
 
O homem íntegro não está dividido em si mesmo, e não há nele nenhuma distância entre o pensar, o sentir e o agir, porque ele é uno. O homem íntegro não disputa, pois a sua parte mais importante, que é o espírito, comanda as paixões e as submete à razão e ao bom senso; ele não se agasta com as provocações que lhe chegam do exterior, por que é guiado pela própria consciência, sempre reta.    
A mansuetude que caracteriza o viver de um homem íntegro, é poderosa força de atração, de convencimento. Foi a integridade de Allan Kardec que fez acreditadas as suas obras. 
 
Para ressaltar o caráter daquele que legou ao mundo a Ciência Espírita, e para que aqueles que admiram suas obras possam também conhecer o caráter do homem, nós transcrevemos aqui uma nota de alguém que frequentou seu lar, esteve a observá-lo de muito perto, e que hoje nos possibilita conhecer um pouco mais o ser humano que foi Allan Kardec.
 
Eis o que diz o Dr. Grand, antigo vice-cônsul da França, em uma nota sobre o Livro dos Espíritos, em sua brochura intitulada: Carta de um Católico sobre o Espiritismo: [1]
 
“Lendo esta obra sente-se que o autor fala, não apenas como homem convicto, mas como homem de experiência que a tudo observou com uma perfeita independência de ideias. Tudo ali é discutido friamente, sem exageração. Todas as consequências ali são deduzidas de argumentos tão justos que se poderia dizer que a filosofia ali é tratada matematicamente. Quando mais tarde tive a ocasião de ver o Sr. Allan Kardec, e de ler seus outros escritos, reconheci que estava ali o fundo de seu caráter e o próprio de seu espírito. É um homem essencialmente positivo, que não se emociona com nada, e discute os fenômenos mais extraordinários com tanto sangue frio como se se tratasse de uma experiência comum. ‘Para se apreciar de maneira correta as coisas, disse ele, é preciso observar sem entusiasmo, pois o entusiasmo é fonte da ilusão e de muitos erros.’ Ele discorre sobre as coisas do outro mundo como se as tivesse sob os olhos, e no entanto ele não fala delas como inspirado, mas como daquilo que existe de mais natural no mundo. Ele no-las torna, por assim dizer, palpáveis, pois possui, sobretudo, a arte de fazer compreender as coisas mais abstratas; é, pelo menos, a impressão que senti ao ouvi-lo falar, e que muitas outras pessoas, como eu, também sentiram. O caráter dominante de seus escritos é a claridade e o método; se a isto ajuntarmos um estilo que permite lê-los sem fadiga, ao contrário da maioria das obras de filosofia, que exigem penosos esforços para serem compreendidas, não se ficaria admirado pela influência que seu estilo exerceu sobre a propagação da Doutrina Espírita.
 
A esta explicação, que em poucas palavras julguei importante dar, acrescentarei uma simples observação sobre uma das causas que, na minha opinião, contribuíram poderosamente para dar o crédito de que gozam as obras do Sr. Allan Kardec: é a ausência de todo sentimento de aspereza para com seus adversários. Um homem não se coloca em evidência, como ele o fez, sem suscitar muitos ciúmes, muita animosidade; entretanto, em nenhuma parte se encontra o mínimo traço de rancor ou de malevolência, a mínima recriminação endereçada àqueles dos quais ele poderia se queixar. Desde a minha iniciação no Espiritismo tenho frequentemente tido a ocasião de vê-lo na intimidade, e posso dizer que jamais o vi se preocupar com seus detratores; é como se eles não existissem. Ora, confesso que o caráter do homem não contribuiu pouco para corroborar a opinião que eu tinha concebido em favor da Doutrina, quando li seus escritos. É evidente que se eu tivesse reconhecido nele um homem ambicioso, intrigante, ciumento e vingativo, teria dito que ele mentia aos princípios que professa, e desde então minha confiança na verdade dessa Doutrina teria sido abalada. 
 
Essas reflexões, em forma de parênteses, me pareceram úteis para motivar uma das causas que mais fortemente me levaram a prosseguir, com comprometimento, meus estudos espíritas.
 
Uma outra circunstância, não menos preponderante, vem se juntar às demais e me explicar, ao mesmo tempo, a profunda indiferença do autor para com as diatribes de seus  antagonistas. Eu estava um dia na casa dele no momento em que ele recebia sua correspondência, muito numerosa como de hábito. Encontrava-se ali um jornal em que notadamente o Espiritismo e ele próprio eram amplamente escarnecidos. Havia também muitas cartas que ele leu igualmente para mim, dizendo: ‘Ireis agora ver a contrapartida, e podereis julgar o que é o Espiritismo.’ Entre as cartas, algumas eram pedidos de conselhos sobre os atos mais íntimos e frequentemente os mais delicados da vida privada. A maioria continha a expressão de indizível felicidade, do reconhecimento mais tocante pelas consolações que se havia encontrado na Doutrina; pela calma que ela havia proporcionado; pela força que ela havia dado nas circunstâncias mais afligentes; pelas boas resoluções que havia feito tomar. ‘O que vedes aqui, me disse ele, se renova quase diariamente. Os autores dessas cartas me são, na sua maioria, desconhecidos, mas eis aqui um, e eu conheço muitos que estão na mesma situação, que sem o Espiritismo se teriam suicidado.
 
Acreditais que a satisfação de ter arrancado homens ao desespero, ter trazido a paz a uma família, feito pessoas felizes, não me compensa largamente por algumas pequenas e tolas críticas da parte de pessoas que falam de uma coisa sem a conhecer? Acreditais que uma só dessas cartas não compensam, de sobra, algumas maldades das quais fui alvo? Aliás, teria eu tempo de me ocupar com aqueles que zombam? Eu prefiro, bem mais, dar meu tempo àqueles a quem eu posso ser util. Não tenho somente para mim a consciência de minhas boas intenções; Deus, em sua bondade, reservou-me um gozo bem maior, que é o de ser testemunha do bem que a Doutrina Espírita produz; e eu julgo, pelo que vejo, sobre a influência que ela exercerá quando estiver generalizada. Não se trata de uma utopia, pois ela é essencialmente moralizadora; vede por vós mesmo a reforma que ela opera sobre os indivíduos isolados; o que ela faz sobre alguns, o fará sobre cem, sobre mil, sobre um milhão, pouco a pouco, compreende-se.
 
Ora, supondes uma sociedade penetrada dos sentimentos do dever que vedes expressos nessas cartas; credes que ela não extraísse daí elementos de ordem e de segurança? As cartas que vindes de ouvir são todas de pessoas esclarecidas, mas vede esta: é de um simples operário, outrora imbuído das ideias sociais mais subversivas. Ele figurou, de maneira lamentável, em nossas lutas civis, e havia dedicado um ódio implacável aos que ele acreditava serem favorecidos às suas expensas, e sonhava coisas impossíveis. Agora, que diferença de linguagem! Hoje ele compreende que a passagem pela Terra é uma prova e, buscando um bem-estar muito natural, não pede nada às expensas da justiça. Ele não inveja a felicidade aparente do rico, porque sabe que há uma justiça divina, e que essa felicidade, se ele não a mereceu aqui na Terra, terá terríveis reveses numa outra vida. E por que pensa ele assim? Porque lhe dissemos? Não, mas porque ele adquiriu, pelo Espiritismo, a certeza dessa vida futura na qual não acreditava, e que pôde convencer-se por si mesmo, pela situação daqueles que nela se encontram, e porque seu pai, que o entretinha nessas ilusões veio, ele mesmo, lhe dar conselhos plenos de sabedoria. Ele blasfemava contra Deus, que achava injusto por haver favorecido algumas de suas criaturas; hoje ele compreende que esse mesmo favor é uma prova, e que sua justiça se estende sobre o rico como sobre o pobre. Eis o que o torna submisso à vontade de Deus, bom e indulgente para seus semelhantes, feliz em seu modesto trabalho. Credes que o Espiritismo não lhe prestou maiores serviços do que aqueles que se esforçam para lhe provar que não há nada após esta vida, princípio que tem por consequência que se deve buscar aqui sua felicidade a qualquer preço? Eis, Senhor, o que é o Espiritismo. Aqueles que o combatem é porque não o conhecem. Quando ele for compreendido, nele se verá uma das mais sólidas garantias de felicidade e de segurança para a sociedade, pois não serão os seus adeptos sinceros que a perturbarão.’
 
Eu confesso que jamais havia encarado o Espiritismo sob esse ponto de vista. Agora eu lhe compreendo o alcance, e lamento aqueles que ainda veem nele apenas um fenômeno curioso de mesas girantes. Eu me perguntava se a doutrina dos diabos e dos demônios, do Sr. de Mirville,[2] poderia dar semelhantes consolações; se ela seria de natureza a conduzir os homens ao bem e à fé religiosa, e se não teria contribuído, ao contrário, mais para os desviar, inspirando-lhes mais medo do que amor, mais curiosidade do que sentimentos bons e humanos.”


[1] O autor faz referência ao Livro dos Espíritos em uma nota, aqui traduzida pela equipe do IPEAK, inserida em sua Carta de um católico sobre o Espiritismo. Kardec recomenda essa brochura na Revista Espírita de novembro de 1860, em Bibliografia.
A brochura do Dr. Grand também consta na relação de obras queimadas no Auto de fé de Barcelona (ver Revista Espírita de novembro de 1861), e está disponível, em francês, no site: www.ipeak.com.br, no link:
[2] O Dr. Grand se refere ao livro do Sr. de Mirville, intitulado: Questões dos Espíritos, publicado em 1855, e que Kardec recomenda em seu Catálogo Racional, na seção: Obras diversas sobre o Espiritismo. (N.T)