“O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que podemos estabelecer com os Espíritos; como filosofia, abrange todas as conseqüências morais que decorrem dessas relações”. [1]
Estudar com atenção o Espiritismo, compreender em profundidade a sua constituição é obrigação de todo aquele que se diz espírita. Como podemos observar no texto em epígrafe, o codificador apresentou o Espiritismo, de forma resumida, como contendo em si três aspectos fundamentais: i) o científico, fundado no conceito de ciência de observação e experimentação; ii) o filosófico, baseado nas reflexões geradas pela observação, e nas relações entre o objeto observado e o observador; e iii) as consequências morais, fundadas nesta reflexão filosófica, conduzindo a uma necessária postura ética ante a vida como efeito imediato da conscientização produzida pela assimilação destes conhecimentos.
Esta estrutura, ligeiramente modificada, é muito comum em nosso movimento espírita. Aprendemos, assim que entramos em uma sala de aula, seja do ESDE ou uma turma introdutória, conforme a região e a metodologia adotadas, que o Espiritismo pode ser representado como um triângulo onde a base é a ciência e a filosofia e a religião (para nós Moral) é o cume, o momento de transcendência do indivíduo. Embora eu particularmente não concorde com esta definição de Espiritismo como ‘religião’, este não é o nosso objetivo neste artigo. O importante é compreender qual a relação desta estrutura com o título do texto, ou seja, com o processo de desenvolvimento moral do ser.
Como dizíamos, esta representação do Espiritismo como um triângulo de forças é interessante porque nos leva a concluir que não temos como alcançar a transcendência sem a necessária análise reflexiva de nossas vidas e posterior aplicação prática dos conceitos e princípios morais espíritas que adotamos como regra de conduta. Esta representação pode ser aplicada com muito sucesso no processo de renovação moral do Espírito, encarnado ou desencarnado. Senão, vejamos suas relações:
1º) As características principais do aspecto científico são justamente a observação e a experimentação. Kardec ressalta o valor da observação quando diz que
“[...] Estudamos para conhecer o estado das individualidades do mundo invisível, as relações que existem entre elas e nós [...]. Nessa perspectiva não há nenhum Espírito cujo estudo seja inútil; aprendemos alguma coisa com todos; suas imperfeições, seus defeitos, sua incapacidade, sua própria ignorância são motivos de observação que nos iniciam na natureza íntima desse mundo” [2].
Utilizando o raciocínio da citação acima, o aspecto científico do Espiritismo deve ser utilizado como ferramenta para que possamos observar a estrutura interna de nosso eu. O objetivo é realizarmos um verdadeiro levantamento sobre nossa própria vida, uma catalogação de tudo o que for importante. E podemos começar esta observação seguindo o exemplo de Santo Agostinho, quando nos estimula a fazer o que ele fazia quando viveu por aqui:
“[...] No fim de cada dia interrogava a minha consciência, passava em revista o que havia feito e me perguntava a mim mesmo se não tinha faltado ao cumprimento de algum dever, se ninguém teria tido motivo para se queixar de mim. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim, necessitava de reforma” [4].
É desta maneira que o aspecto científico do Espiritismo serve para realizamos a primeira etapa do processo de desenvolvimento moral do ser, pois, somente após um levantamento cuidadoso e criterioso do que somos é que podemos utilizar o segundo aspecto da Doutrina Espírita;
2º) A segunda etapa neste processo é a reflexão filosófica em torno das observações feitas. A Filosofia Espírita realiza, nos dizeres de J. Herculano Pires, a interpretação da pesquisa efetuada através da observação e catalogação dos mínimos detalhes referentes aos fenômenos. As ferramentas imprescindíveis nesta etapa são a razão, o senso crítico e uma lógica rigorosa. É isto o que leva Kardec a dizer que a força do Espiritismo “está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso” [5].
É este aspecto que será utilizado para interpretar os dados que coletarmos sobre o nosso mundo interior, sobre nós mesmos. Devemos analisar o estado de nossa individualidade, que defeitos possuímos; quais virtudes, que mundo íntimo criamos para nós mesmos; quais os nossos gostos, porque agimos de tal forma e não daquela outra; enfim, porque somos o que somos. Segundo Santo Agostinho
“O conhecimento de si mesmo é, portanto a chave do melhoramento individual. Mas, direis, como julgar a si mesmo? Não se terá a ilusão do amor-próprio, que atenua as faltas e as torna desculpáveis? O avaro se julga simplesmente econômico e previdente, o orgulhoso se considera tão-somente cheio de dignidade. Tudo isso é muito certo, mas tendes um meio de controle que não vos pode enganar. Quando estais indecisos quanto ao valor de uma de vossas ações, perguntais como a qualificaríeis se tivesse sido praticada por outra pessoa. Se a censurardes em outro, ela não poderia ser mais legítima para vós, porque Deus não usa de duas medidas para a justiça. Procurai saber também o que pensam os outros e não negligencieis a opinião dos vossos inimigos, porque eles não têm nenhum interesse em disfarçar a verdade e realmente Deus os colocou ao vosso lado com um espelho, para vos advertirem com mais franqueza do que um amigo” [4].
Como podemos ver, a análise crítica que tanto estimulamos que seja feita sobre os ditados dos Espíritos é a mesma que deve ser feita sobre nós mesmos. A mesma lógica rigorosa, o mesmo senso crítico e o mesmo bom senso devem ser usados para avaliar o que somos, o que queremos e o porque de não sermos ainda aquilo que almejamos ser.
3º) A última etapa, a das consequências morais, está representada, como dissemos, na parte de cima do triângulo. Aqui está estabelecida a Moral Espírita, que tem como fundamento o livro terceiro de O Livro dos Espíritos intitulado Leis Morais. É também conhecida como a famosa “Religião Espírita”. Este aspecto demonstra a finalidade última do Espiritismo que é o aperfeiçoamento moral e intelectual dos homens. Este é o momento em que o Espírito transcendendo a si próprio, alcança a plenitude.
Este momento, como dito no início do artigo, representa o momento de transcendência do indivíduo, pois após observar e catalogar os dados ele processou a informação de forma racional, analisou cada elemento, cada detalhe, cada vício, cada qualidade e compreendeu, ao aplicar seu senso crítico, o que é e o que deseja ser. Muito mais importante ainda é compreender que agora ele sabe, e não mais supõe que sabe quem é.
De forma bastante resumida, quisemos utilizar o aspecto triplo do Espiritismo para demonstrarmos que ele é útil para o aplicarmos ao processo de desenvolvimento moral do Espírito, em especial, do encarnado. Até porque só assim, através deste exercício, estaremos aplicando a fé raciocinada preconizada pelo Espiritismo. E só assim, também, poderemos nos tornar verdadeiros homens de bem. Até porque, segundo Kardec, “a crença no Espiritismo só é proveitosa para aquele de quem podemos dizer: ele está melhor hoje do que ontem” [3]. Bom, sabemos que poderíamos dizer muito mais, entretanto, creio que estão expostas de forma clara as relações e reflexões que achamos mais necessárias. Cada um pode complementar estas observações por si e tentar aperfeiçoar o seu desenvolvimento moral utilizando as reflexões expostas como pano de fundo.
Finalizamos este artigo endossando a opinião de Santo Agostinho quando afirma que “[...] Aquele que tem a verdadeira vontade de se melhorar explore, portanto, a sua consciência, a fim de arrancar dali as más tendências como arranca as ervas daninhas do seu jardim: que faça o balanço da sua jornada moral como o negociante o faz dos seus lucros e perdas, e eu vos asseguro que o primeiro será mais proveitoso que o outro. Se ele puder dizer que a sua jornada foi boa, pode dormir em paz e esperar sem temor o despertar na outra vida” [4].
Referências:
[1] PIRES, José Herculano. Introdução ao Espiritismo. 1ª Ed, SP – Ed. Paidéia, 2009. P. 69
[2] ______. Idem, p.148
[3] ______. Idem, item 38, p. 56
[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 65ª Ed, SP – LAKE, 2006. Q. 919-a.
[5] ______. Idem. Conclusão, item VI, p. 345.