Escrito no ano de 1859, dois anos após o lançamento
de O Livro dos Espíritos, O Que
é o Espiritismo é um texto que merece um estudo atento e profundo.
Concebido de forma didática e com objetivo de facilitar a compreensão do leitor
iniciante no Espiritismo, esta obra cumpre a sua função de informar em poucas
páginas e de forma clara a essência do Espiritismo. O objetivo deste artigo é analisar
apenas o preâmbulo desta fantástica obra com o intuito de estimular no leitor o
interesse por iniciar seus estudos espíritas corretamente.
“As
pessoas que têm um conhecimento apenas superficial do Espiritismo são
naturalmente levadas a fazer algumas perguntas para as quais um estudo completo
do assunto lhes daria sem dúvida a resposta; mas lhes faltam tempo e quase sempre vontade para se dedicarem a
observações assíduas. Antes, gostariam de saber ao menos do que se trata e
se vale a pena dedicarem-se a isso”.
É interessante notar, em princípio, a atualidade
desta observação de Kardec, mesmo passados mais de 150 anos da sua publicação. Podemos
afirmar que tanto os opositores quanto os simpatizantes do Espiritismo ainda agem
da mesma forma. Incluo também os próprios adeptos, visto que por falta de
interesse em um estudo sério existem médiuns com vários anos de prática mediúnica
que nunca leram O Livro dos Médiuns.
Como afirma Kardec, para muitos falta tempo e, para outros, quase sempre,
vontade suficiente para um estudo profundo, já que, nas palavras do próprio
codificador “o Espiritismo está próximo de todos os ramos da Filosofia, da
Metafísica, da Psicologia e da Moral. É um campo imenso que não pode ser
percorrido em algumas horas”. Ou seja, o Espiritismo deve ser objeto de um
estudo metódico, perseverante, dinâmico e amplo o suficiente para permitir que
se observe toda a sua extensão e profundidade. Não são leituras ocasionais, nem
estudos semanais com uma média de uma hora e trinta minutos nos grupos de ESDE
que darão esta compreensão. Para entender o Espiritismo, são necessários muito
mais leitura e dedicação. E não é, tampouco, através da leitura de obras como
Nosso Lar (para citar uma famosa), que aprenderemos o que é o espiritismo. Esta
obra, como todas as outras que se assemelham a ela, só deveriam ser lidas e/ou
estudadas após o sério estudo de todas as obras publicadas por Allan Kardec,
não só as cinco consideradas “o pentateuco”. Só teremos condições de avaliar o
valor de qualquer obra quando nos compenetrarmos dos princípios espíritas
conforme exposto nos quase vinte livros publicados por Kardec.
“Pareceu-nos
útil apresentar, resumidamente, respostas a algumas das principais questões que
nos são dirigidas diariamente. Para o leitor será uma iniciação a para nós uma
economia de tempo por evitar repetições constantes”.
Aqui está a definição do objetivo desta obra:
apresentar de forma resumida algumas respostas às principais questões feitas sobre
o Espiritismo ao codificador. Essas perguntas, naturalmente, surgem de uma
forma ou de outra, na atualidade, da mesma forma que à época do codificador.
Ainda existem pessoas que desejam conhecer e estudar o Espiritismo seriamente e
gostariam de saber exatamente o que ele significa. Também é útil, como o
próprio codificador o afirma para aqueles que estão iniciando nos estudos
espíritas, por lhes permitir uma introdução rápida e potencialmente profunda ao
universo filosófico espírita. É esta preocupação que leva Kardec a afirmar:
“Numa
leitura inicial séria encontraremos, aliás, a resposta para a maioria das
perguntas que acorrem naturalmente ao pensamento. Ela tem a dupla vantagem de
evitar repetições inúteis e verificar a seriedade do desejo de instrução".
Como se pode observar, Kardec tinha uma preocupação
extremada com as repetições inúteis. Primeiro, ele considera séria toda leitura
que tem por finalidade compreender as noções preliminares sobre a Doutrina de
maneira profunda. Segundo, para Kardec, o esforço do neófito e sua perseverança
neste momento eram a melhor demonstração do seu desejo sincero de aprender.
Diferente de hoje, onde as pessoas que têm seu primeiro contato com o
Espiritismo através dos romances mediúnicos são incorretamente estimuladas a continuarem
seus estudos “aprofundados” através deles, muitos sequer são apresentados a
obras como A Gênese e O Céu e o Inferno, pois, argumentam os
bem intencionados orientadores, elas são obras difíceis de entender. O curioso
é justamente o esquecimento (voluntário?) de uma obra escrita com a finalidade
de ser a porta de entrada para todo aquele que, movido pelo sincero desejo de
aprender, decida conhecer e estudar o Espiritismo.
“O
primeiro capítulo contém, sob a forma de diálogos, respostas às objeções mais
frequentes daqueles que ignoram os fundamentos da doutrina, assim como a
refutação dos principais argumentos de seus opositores. Foi a maneira que nos
pareceu mais conveniente porque não possui a aridez da forma dogmática”.
Segundo Herculano Pires, Kardec escolhe uma “das
formas clássicas e mais fecundamente livres da tradição filosófica: o diálogo”.
Esta forma está consagrada pelo tempo. O próprio Platão, ícone maior da
Filosofia, escreveu todas as suas obras em formato de diálogo. Esta estrutura
permite um ir e vir das ideias de forma mais livre, fazendo jus às múltiplas
faces de temas centrais e transcendentes como a morte e o viver, a vida após a
morte, a imortalidade da alma, o bem e o mal, a justiça divina, entre tantos
outros temas importantes para a humanidade. É nesta linha de pensamento que
Kardec inclui os principais temas que surgem das objeções que lhe foram formuladas.
Herculano Pires ainda afirma que
“Hegel
definiu a estrutura e a função do diálogo, identificando as suas leis com as do
próprio ser: tese, antítese e síntese. Mais tarde, Marx e Engels deslocaram o
diálogo dessa concepção ontológica, para lhe dar um sentido materialista e
revolucionário. Coube a Hamelin, entretanto, defini-lo em seu aspecto mais
fecundo, como um processo de fusão necessária da tese e da antítese, na
produção de uma nova ideia ou nova fase”.
“Este, a nosso ver, é o processo
dialético do Espiritismo, que em vez de dar ênfase à contradição em si, à luta
dos opostos, prefere dá-la à harmonia, à fusão dos contrários, para uma nova
criação. E é nesse sentido que se desenvolve o diálogo no O Livro dos
Espíritos”. (E podemos adicionar: e em O que é o Espiritismo)
O diálogo também atende à proposta contida em
prolegômenos que é a de “estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional,
livre dos prejuízos do espírito de sistema”. Ainda segundo Herculano Pires,
Kardec não desejava criar uma nova escola filosófica, pois isto implicaria toda
uma rígida sistematização, algo que o codificador deixa bem claro ao afirmar
que não queria dar ao texto “a aridez da forma dogmática”.
“O
segundo capítulo é consagrado à exposição sumária das partes da ciência prática
e experimental sobre as quais, por falta de uma informação completa, o
observador iniciante deve dirigir sua atenção para julgar conhecimento de
causa. De certa forma, é o resumo do Livro
dos Médiuns. Muitas vezes objeções surgem de ideias falsas que fazemos, a priori, sobre o que não conhecemos;
retificar essas ideias é ir ao encontro das objeções: tal é o objetivo deste pequeno
trabalho”.
Este parágrafo é de especial importância para aqueles
que querem indicar uma leitura introdutória para os médiuns recém-admitidos nos
grupos de estudos e práticas espíritas. Ele também é valioso para os milhares
de médiuns em atividade, muitos com vários de anos devotados ao trabalho de
desobsessão, por exemplo, e que até hoje nunca estudaram O Livro dos Médiuns devidamente. Por sua forma resumida, Kardec
consegue expor em 11 tópicos aquilo que é de vital importância saber sobre o
tema e que permite dirimir muitas dúvidas que surgem por conta da ignorância. O
título deste capítulo já é significativo por si só: Noções elementares do Espiritismo. Nele Kardec explica em poucas
palavras quem são os Espíritos, como funcionam as comunicações com o mundo
invisível, qual o objetivo providencial das manifestações espíritas, quem são
os médiuns, o que significa ser médium, as dificuldades inerentes aos usos da
mediunidade, as qualidades que devem constituir a personalidade do médium,
explica o charlatanismo, a identidade dos espíritos, as contradições
encontradas nas comunicações dos Espíritos e as consequências do Espiritismo.
Como se pode ver, mesmo resumidamente, a quantidade de informações é
considerável e só ressalta a importância do estudo sério e consciencioso.
“O
terceiro capítulo pode ser considerado como o resumo do Livro dos Espíritos. É
a solução dada pela doutrina espírita para uma série de problemas da mais alta
importância, de ordem psicológica, moral e filosófica, que nos colocamos
diariamente, e dos quais nenhuma filosofia deu ainda soluções satisfatórias.
Qualquer tentativa de resolvê-los por outra teoria e sem a ferramenta que o
Espiritismo nos fornece não dará respostas mais lógicas e racionais”.
Este parágrafo corresponde à afirmação contida na
conclusão de O Livro dos Espíritos, item VI: “Sua força está na sua filosofia,
no apelo que faz à razão e ao bom senso”. O mesmo se pode dizer desta outra
citação: “O Espiritismo progrediu sobretudo depois que foi melhor compreendido
em sua essência [...]. Nisso está a causa da sua propagação [...]. Mesmo aquele
que não tenha testemunhado nenhum fenômeno material de manifestações, dirá:
além dos fenômenos há uma filosofia; essa filosofia me explica o que nenhuma
outra havia explicado; nela encontro, pelo simples raciocínio, uma demonstração
racional dos problemas que interessam no mais alto grau ao meu futuro” (O Livro
dos Espíritos, item V da conclusão). Ainda podemos dizer que ele corresponde ao
desejo, ou poderíamos dizer ‘previsão’, de Kardec de se adiantar àqueles que
alegariam mil e uma dificuldades em ler O Livro dos Espíritos, ou considera-lo
dificílimo (mesmo sem tê-lo lido).
Este é um resumo maravilhoso daquilo que se constitui
como a ‘força’ do Espiritismo. Normalmente tida como ‘muito difícil’, a
Filosofia Espírita sofre de uma incompreensão enorme, ao mesmo tempo em que é
exaltada quando se referem ao tríplice aspecto da Doutrina Espírita. Paradoxo
incompreensível e inacreditável. Contudo, a responsabilidade para esta situação
reside na omissão de muitos centros espíritas que alienam os seus
frequentadores, ao elegerem temas para as palestras públicas unicamente de O
Evangelho segundo o Espiritismo. O tríplice aspecto espírita é indissociável e,
portanto, também nestas reuniões ele deve estar presente. E fica aqui a
proposta de revisão do temário das palestras públicas, inserindo sempre tópicos
de O Livro dos Médiuns, O Livro dos Espíritos, O Céu e o Inferno e A Gênese.
Claro que não necessitamos colocar capítulo por capítulo, mas, não podemos
excluí-los alegando serem ‘difíceis’, ou qualquer outra desculpa.
“Esta
exposição não somente é útil para os iniciantes que poderão encontrar aqui, em
pouco tempo e com pouco esforço, as noções mais essenciais, mas também para os
adeptos, aos quais ele fornece os meios de responder às primeiras objeções que
não cessam de lhes fazer e que, além disso, encontrarão reunidas numa resenha,
fácil de consultar, os princípios que não devem jamais ser perdidos de vista”.
Kardec aqui reitera o que disse no início sobre a
utilidade deste livro para os leitores iniciantes, por poupar-lhes o tempo de
uma leitura mais ampla e profunda, como seria a de O Livro dos Espíritos ou O
Livro dos Médiuns. Ele apresenta os princípios essenciais de forma objetiva,
sem perda de conteúdo e de forma a que qualquer pessoa possa compreender de
pronto o que seja o Espiritismo. Contudo, ele aproveita este mesmo livro para
servir de referência aos adeptos, aos estudantes e estudiosos da doutrina para
auxiliá-los a responder as mais diversas objeções que são feitas sobre o Espiritismo.
Aqui, como em diversos outros momentos, Kardec demonstra toda a sua experiência
pedagógica. Não querendo perder tempo em revisões sem fim com todos os neófitos
interessados em compreender o que seja o Espiritismo, ele formula este livro
que lhe desobriga de ficar repetindo e repetindo as mesmas coisas sem cessar e
facilita a vida de quem possui a legítima curiosidade de saber o que, de fato,
seja a Doutrina Espírita.
É
por isto que me causa espanto quando vejo alguém manifestar o desejo de
conhecer os princípios espíritas e, mesmo com toda a sua boa vontade, o adepto
lhe aconselhar a começar por ‘livros mais fáceis’, como Nosso Lar e Violetas na
Janela, por exemplo. Este dois livros, como já dissemos, só devem ser lidos
após o interessado apropriar-se dos princípios e leis constantes das obras
fundamentais do Espiritismo. Pois, do contrário, ela acreditará que, de fato,
viveremos do lado de lá, como vivemos aqui, com um corpo igual, com órgãos,
precisando respirar, andar e comer da mesma forma que nesta terra. O que não é
exato. Pois, estudando primeiramente a Doutrina Espírita, aprenderia já em O Livro dos Espíritos que “[...] o
espírito tem percepção, sensação, audição, visão, que essas faculdades são atributos de todo o seu ser, e não apenas de
certos órgãos, como nos homens”. Que “[...] todos eles [Espíritos],
inferiores ou superiores [...], como não
possuem órgãos sensoriais, podem tornar à vontade as suas percepções ativas
ou nulas”. Podemos perceber, assim o espero, que o livro O que e o Espiritismo prepara o neófito para todas as questões que
surgirão à medida em que for se aprofundando nas questões espíritas. Esta
questão sobre o períspirito, aliás, é uma daquelas em que podemos observar com
mais facilidade o problema da incorreta formação doutrinária espírita. Pois,
como poderá um leitor novato analisar a validade das informações contidas nos
romances mediúnicos da atualidade? Como separar o joio do trigo? Somente boa
vontade não basta, embora seja essencial tê-la. É por que isto que Kardec
afirma que “[...] aquele que é mistificado por Espíritos, geralmente é porque
lhes fez perguntas indevidas ou que eles não podiam responder, ou porque não estavam bastante esclarecidos
para distinguir a verdade da impostura” (O Livro dos Médiuns, capítulo 3 –
Método, p. 29).
Muito
mais poderia ser dito com relação a este preâmbulo, pois a atualidade dele é
imensa. Todo o livro é de um valor incalculável e é lamentável observar o
quanto a sua leitura é relegada a segundo plano sob a desculpa de que Kardec é
o “a-b-c” e os autores espirituais como André Luiz, Manoel Philomeno de Miranda
e Joana de Ângelis, para fechar em três dos mais conhecidos, são a universidade
do Espiritismo. Além de leviano, uma afirmação destas demonstra um total
desconhecimento da Doutrina Espírita e um imenso despreparo para assumir
tarefas de divulgação doutrinária. Da mesma forma, colocar em evidência a
importância dos estudos da coleção da Revista Espírita é imprescindível, dado
que somente após as comemorações dos 150 anos de lançamento de O Livro dos
Espíritos é que a Federação Espírita Brasileira (FEB) decidiu lançar a sua
tradução e disponibilizá-la gratuitamente na internet. Já existiam desde a década
de 50 duas traduções da Revista disponíveis, mas, infelizmente sua divulgação
era muito discreta e isto não permitiu seu pleno conhecimento por parte dos
Espíritas em todo o país.
Contudo,
esta atitude da FEB não conseguiu desfazer ainda a injusta concepção de que tudo o
que é necessário ler sobre o Espiritismo estava nas cinco obras espíritas
conhecidas erroneamente como ‘básicas’. E assim ignoram milhares de espíritas a
importância das Revistas, não apenas como laboratório de Kardec, mas, e acima
de tudo, como leitura fundamental, dado que quando um tema não era abordado de
maneira suficiente em alguma das cinco obras, o codificador sempre remetia o
leitor para as Revistas Espíritas para maiores detalhes. A riqueza de
conhecimento destas revistas é incalculável e ainda está para ser devidamente
descoberto pelos Espíritas. Da mesma forma que a imensa riqueza deste pequeno
livro ainda está para ser devidamente avaliada. E desejamos imensamente que
este texto possa contribuir de alguma forma!
Referências
KARDEC, Allan. O Livro dos
Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 65ª edição. São Paulo: LAKE, 2006.
___________. O Livro dos
Médiuns. 23ª edição. São Paulo: LAKE, 2004.
PIRES, J. H. Introdução ao
Espiritismo: livro de introdução à teoria e prática da doutrina. Allan Kardec.
Contendo as obras: O Espiritismo em sua mais simples expressão, O que é o
Espiritismo e Instruções práticas sobre as manifestações espíritas. Org. e
notas: J. Herculano Pires. 1ª edição. São Paulo: Editora Paidéia, 2009.
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